Pontos de vista: as vezes você aprende mais sobre qualquer coisa no seu completo oposto
Você já teve a percepção de que você aprende melhor sobre determinado assunto quando muda seu ponto de vista e aquilo ganha corpo na sua mente?
Eu to fazendo auto escola, né? Muito mais por pressão do meu pai que pelo meu próprio querer, uma vez que eu não teria muita pena de calvos de sunga e tenho certa propensão a arranjar uma briga de transito pois é povoado por imbecis. Enfim. Para aprender a fazer a porra da baliza e o percurso, o abençoado do meu instrutor colocou na minha mente a seguinte frase “Seta, marcha, freio de mão e olhou pra fora”. Tenta reler com a música da Gilmelândia na cabeça, só a última parte que não rima, mas o resto, tá feito.
Coincidentemente, minha sobrinha me pediu uma mochila do Stitch. Não apenas a mochila, como a lancheira e o estojo. “Tio, eu AMEI. TIPO, eu AMEI DEMAIS. Olha como ela é linda, olha como eu to adolescente. EU AMO MUITO VOCÊ, tio.” Uma mochila causou essa pororoca de emoção que me fez perguntar, como as crianças amam? O que movimenta o amor de uma criança?
Em algum momento da minha vida, nutri algum interesse por psicanálise. Num exercício ativo de aprender a viver em sociedade, reaver minha sobriedade mental e entender nossas motivações. E recentemente, eu vi um título que me interessou demais e lá fui eu me lançar num mar de psiquês, coisa que eu mais detesto no mundo. “Como amam as crianças"?” foi lançado pela Bluncher e tem a organização da Michelle Kamers, Ana Suy e a Rosa Marini.
Gosto de navegar por diferentes mares literários e me propus esse desafio, entretanto, não tenho repertório, interesse e vocabulário suficientes para ler sobre psicanálise com o “psicanalês”. Freud, Lacan, Winnicot e companhia criaram o pior e mais truncado de todos os teóricos possíveis. Mas assim como os portugueses foram capazes de fundar a Olinda e Salvador assim que descobriram o Brasil, há dois textos que eu adoraria relatar e são eles que dão o tom do email de hoje.
Nessa coleção de livros, Addela Stoppel de Gueller é extremamente feliz em seu artigo “Um brinquedo capaz de amar”. Em 1969, Brian Aldiss escreveu “Superbrinquedos duram o verão todo”. Foi roteirizado por Stanley Kubrick e finalizado em 2001 por Steven Spielberg. Sob qual título? Inteligência Artificial. Que calha de ser o primeiro filme que me fez chorar.
A.I. gira em torno de David, um garoto-robô programado para amar incondicionalmente sua proprietária: uma mulher angustiada cujo filho permanecerá `congelado` até que a medicina encontre uma cura para sua doença. Quando isso acontece e o menino volta para casa, um conflito se estabelece entre as duas crianças e, obrigada por seu marido, a mulher finalmente decide expulsar David de seu lar. Convencido de que será aceito de volta caso se transforme em um `menino de verdade`, o pequeno robô inicia uma longa jornada em busca da mesma Fada Azul que transformou Pinóquio em gente (sua “querida mamãe” havia lido a história para ele).1
David é na realidade um robô anseia de qualquer forma reaver o que lhe faltou " amor. “Deseja ardentemente conquistar todo o seu amor, mas, por não saber que é um robô, não tem como dimensionar seu anseio” E Addela enfia o dedo na ferida, “A desmesura de sua demanda desconcerta a mãe: David quer mais, sempre mais. Espera dela um amor infinito”. O boneco tenta através de escrever cartas, se esconder, fazer merdinhas infantis reaver o que lhe foi subitamente retirado.
E pior, esse pequeno infeliz tem a companhia de um ainda mais infeliz urso de pelúcia, que ao longo do filme pelo que me lembro vai ficando cada vez mais fudido. E que é o equivalente ao chat GPT do já fudido emocionalmente robô David. O pobre garoto quer e deseja criar ou recriar o amor que lhe foi roubado, talvez “como muitos apaixonados, não quer se frustrar e quer criar uma estratégia infalível de sedução”. Esse não é um filme sobre amor materno, sobre família, é sobre o “não amor”
Talvez por isso, mais que cartinhas, as crianças demandam amor com choro, birra, patadas e abraços que os adultos relutam em interpretar como declarações de uma voraz demanda de amor.
Enquanto a gente assiste ao comercial de fim de ano do Itaú com as Fernandonas e a Rebeca Andrade perguntando para uma inteligência artificial que se interessa por emoções humanas, Spielberg trouxe o próximo passo: o que teríamos que lidar quando os “androides prestavam aos humanos serviços variados, que iam desde tarefas domésticas e serviços de segurança até ser amantes atenciosos e dedicados. Mas amar implicava um novo problema: o desamor”. Por minha conta, o desabono, o abandono.
Gente, olha que problema esse filme e esse artigo trouxe para minha vida. Eu passei anos acreditando que esse era um filme que ensinava sobre amor e pertencimento e agora sei que é completamente o oposto. Vocês lembram que nesse filme ainda tem o dilema do menino Martin com uma doença fudida que está congelado até que haja uma cura e o imbecil do marido que presenteia a esposa com um recém nomeado, baby reborns.
“Essa identificação melancólica é uma outra forma de abraçar o objeto, um modo silencioso de amar que não difere adultos e crianças”. Já andei lendo por ai sobre o uso desses bonecos para o tratamento de estresse pós traumático de gestantes que perderam seus bebês.2
Olha, tem uma citação no texto da Isabel Tatit que é:
A criança é o calcanhar de Aquiles do adulto, segundo a autora, pois este que aparentemente é mais forte, tem medo de ser desarmado por aquela, ser de verdade, reveladora de uma realidade ultrapassada e opressora
Eu confesso que pouco entendi sobre como amam as crianças. Mas acho que a Tatit com uma releitura de Guimarães Rosa foi a mais feliz em se fazer entender quando disse que entre Minguilim e Dito “não se trata de um amor ilusório em busca de completude, mas um laço horizontal no qual está em jogo a função simbólica do semelhante (…) amor não como sinônimo de romance, mas como antônimo da barbárie”.
Acredito criança ama de igual para igual e que é doutrinada a buscar que seu amor seja reconhecido pelos adultos. Também creio que os adultos se amam quando os erês se reconhecem, quando nossas crianças interiores se chamam pra brincar. E eu estou doido para reconhecer o erê que chamarei de meu.
Resumo escrito por Pablo Villaça e publicado em 2001.